terça-feira, janeiro 03, 2006

PSEUDO-EVENTOS

“A produção de eventos constitui um dos principais instrumentos da acção política. Boorstin chama-lhes “">pseudo-eventos” e define-os como possuindo as seguintes características: não são espontâneos; surgem porque foram planeados; são criados para serem cobertos pelos media; o seu sucesso mede-se pela amplitude da sua cobertura; a sua relação com a realidade subjacente à situação é ambígua; geralmente, funcionam como uma auto promoção.
Os políticos são os maiores criadores de eventos. Nos EUA, Roosevelt, com a colaboração de um amigável conjunto de jornalistas que integravam o press corps da Casa Branca, tornou-se um fazedor de pseudo-eventos e de sound-bites que enchiam as primeiras páginas dos jornais, transformando as conferências de imprensa, habitualmente rituais sem interesse, na maior instituição nacional fazedora de notícias, através de um processo informal de conversa e troca de ideias. Sabendo como os jornalistas vivem ávidos de notícias, Roosevelt ajudava-os a construí-las, orientando-as segundo os seus próprios interesses. Boorstin afirma que nos tempos actuais é possível construir uma carreira política inteiramente com pseudo-eventos. E aponta o caso de McCarthy que inventou a conferência de imprensa da manhã para anunciar a conferência de imprensa da tarde. Os repórteres acorriam e preparavam os títulos para os jornais do dia seguinte com o anúncio das revelações que McCarthy dizia que faria à tarde, a uma hora que não permitia divulgação no dia seguinte. Os jornais eram, assim, alimentados com anúncios que muitas vezes falhavam. Sem a ajuda dos jornalistas, os políticos não poderiam criar os eventos que lhes trazem poder e notoriedade. Os jornalistas são, nesta matéria, aliados dos políticos. As instituições políticas são grandes produtoras de pseudo-eventos. Uma grande percentagem das notícias publicadas na imprensa escrita inclui informação baseada em comunicados, estudos ou relatórios. Os próprios jornalistas consideram que a imprensa concede demasiada atenção a eventos, com prejuízo da investigação própria. Contudo, fiéis ao princípio de que a primeira missão de um jornal é produzir diariamente notícias de actualidade, dedicam-se, sobretudo, à descoberta de novas "estórias". As democracias modernas multiplicaram os pseudo-eventos e desenvolveram profissões que os criam e ajudam a interpretá-los. A desproporção entre o que os cidadãos necessitam de saber e o que podem saber é cada vez maior. Essa desproporção cresce com o aumento da capacidade de esconder e orientar a informação por parte do poder. Os jornalistas necessitam de corresponder a esse crescimento e assim seleccionam e procuram novos temas para informar. O jornalista é ele próprio um gerador de notícias. Ao insistir junto dos assessores e dos políticos para obter novos ângulos e novas abordagens que lhe permitam apresentar novas "estórias", está a criar pseudo-eventos. É vulgar os jornalistas solicitarem comentários por parte dos políticos a situações hipotéticas, gerando notícias completamente fictícias do ponto de vista da sua espontaneidade. É o que se chama “fazer render as notícias”. A pressão do tempo e a necessidade de conseguir uma corrente contínua de notícias leva os jornalistas, sobretudo os correspondentes ou os que são destacados junto de instituições, ao uso de entrevistas e outras técnicas de criação de pseudo-eventos, algumas muito agressivas e engenhosas. As novas formas de criação de pseudo-eventos, especialmente no campo político, baralham os papéis de políticos e jornalistas. O político, de algum modo compõe a "estória" (por exemplo ao fazer uma conferência de imprensa). O jornalista, por seu turno, pressionando o político para fornecer comentários ou entrevistas, é um criador de notícias. Esta situação torna difícil aos cidadãos perceberem o que é, de facto, a realidade quando os próprios protagonistas também não sabem. Os jornalistas procuram constantemente novas “estórias” e os líderes políticos são a sua fonte principal. Para saberem o que eles pensam e fazem, cultivam relações com os políticos. Por seu turno, os políticos necessitam dos media para fazerem chegar ao público as suas mensagens. Por isso, cultivam igualmente relações com os jornalistas: promovem briefings, garantem-lhes acesso a locais e a eventos oficiais e, por vezes, fornecem-lhes espaço de trabalho. A produção de notícias é, assim, um processo de negociação e de renegociação constante, através do qual os reporteres identificam o tipo de pessoas que servirão como boas fontes de informação sobre os acontecimentos produzidos. Gaye Tuchman vê nos procedimentos profissionais que levam os jornalistas a solicitar reacções e comentários aos acontecimentos por parte de figuras institucionais, o privilegiar de líderes legitimados, deixando ao “homem da rua” o papel simbólico de representação de outros e não de representante de outros. Para a maioria dos jornalistas que cobrem a política o conceito de notícia abrange actividades concretas como uma votação, uma decisão de um órgão de soberania, um discurso presidencial ou ministerial que ocorra no espaço de 24 horas. A grande maioria das notícias incide sobre eventos que aconteceram no dia anterior, no próprio dia, ou que é suposto acontecerem no dia seguinte. Ora, a concentração do jornalismo nos eventos é propensa a uma eficiente intervenção dos staffs. Um bom exemplo do entrosamento entre sujeito e objecto, entre história e historiador, entre actor e repórter, é a chamada “fuga” de informação. A "fuga" tornou-se uma instituição, sendo um dos processos mais usados na transmissão de informações por parte das fontes oficiais. Boorstin define a “fuga” como um meio, através do qual uma fonte oficial com um propósito bem definido, fornece uma informação, faz uma pergunta ou uma sugestão. Mais que um anúncio directo, a "fuga" presta-se muito melhor a esconder determinados objectivos A "fuga" é o pseudo-evento por excelência. Na sua origem e crescimento, a "fuga" ilustra outro dos axiomas do mundo dos pseudo-eventos: um pseudo-evento produz novos pseudo-eventos. A "fuga" começou como uma prática ocasional de uma fonte oficial transmitir informação confidencial a alguns jornalistas. Hoje, tornou-se uma maneira institucional de transmitir informação. A sua ambiguidade e o ambiente de confidência e intriga em que se processa criam um clima de confiança entre jornalistas e fontes. As regras respeitantes ao “off record” e à atribuição das fontes são especialmente importantes no caso das “fugas” de informação. A chamada informação de background e os encontros off-record tornaram-se, por outro lado, uma espécie de balões de ensaio ou mesmo instrumentos diplomáticos. São, muitas vezes, a base de desmentidos oficiais e de especulação para colunistas e comentadores além de temas de entrevistas e discussões públicas.A técnica da conversa de background em que os políticos fornecem enquadramentos dos factos aos jornalistas, é um sistema colaboracionista que produz a impressão de uma franqueza e espontaneidade naturais. É uma maneira de fornecer notícias ou matérias para artigos de opinião, geralmente favoráveis aos políticos, mas que interessam aos jornalistas dado satisfazerem a sua avidez de informação e lhes proporcionarem relações pessoais com o poder. Esta prática tornou-se hoje corrente por parte de políticos e jornalistas que vêem nela uma fonte de inspiração para os seus textos.Boorstin refere que em Washington um bom teste para avaliar as aptidões de um repórter reside na capacidade que ele possuir de penetrar nessas zonas recônditas e sombrias da informação, de conseguir uma relação com fontes bem colocadas e desenvolver um vocabulário específico relativamente a este tipo de situações. Esses repórteres vivem numa penumbra entre factos e fantasias. Ajudam a criar obscuridade, quando era suposto esclarecerem. Estas aptidões são também característica das fontes importantes: “Saber negar a verdade sem realmente mentir”. A explicação para esta conjugação de interesses entre jornalistas e políticos, aparentemente contraditória, reside, em parte, na própria natureza do trabalho jornalístico. Como escreveu Thomas Patterson a política não é o que mais interessa aos jornalistas. O mais importante para um jornalista é ter uma “estória” para contar. (...) Num debate organizado pela Columbia Journalism Revue , a propósito do envolvimento militante dos media relativamente ao caso Clinton/Lewinsky, a correspondente da Casa Branca da Rádio Pública Nacional dos EUA afirmou que a maioria dos jornalistas que surgiram a falar do caso faziam-no como comentadores e, portanto, emitiam apreciações pessoais. Não agiam como repórters baseados em fontes credíveis ou em investigação própria.. O problema, segundo um dos participantes nesse debate, está no facto de o público nem sempre perceber a diferença entre comentadores e repórteres, levando-o a avaliar os media e o jornalismo como um todo que realmente não são”.

Excerto de um texto de Estrela Serrano intitulado JORNALISMO E ELITES DO PODER.